por Mariana Lage

Sempre atual. Nascido do convívio de dois anos entre Denise Stoklos e a escultura francesa radical nos Estados Unidos, o espetáculo “Louise Bourgeois: faço, desfaço, refaço” aborda a vida, a obra e as sucessivas indagações desta artista inquieta que é também pensadora, escritora e desenhista.

Foi lendo os escritos e vendo os diversos trabalhos de Bourgeois que a atriz, diretora e coreógrafa motivou-se a elaborar um trabalho cênico que tratasse da grandeza transformadora da escultura. “Por mais que nos aproximemos de seu trabalho há sempre mais a surgir das diversas camadas de seus desenhos, trabalhos em pano, em bronze, em ferro, em aço e a própria palavra que ela esculpe nos seus escritos”, explica Stoklos.

Se Louise serviu como inspiração e como matéria viva da composição deste trabalho-solo, ela se tornou também responsável pela cenografia, pelo texto e por parte da música. Uma relação simbiótica que coloca a escultora como sujeito, autora e, ao mesmo tempo, personagem do espetáculo. Como explica Stoklos, um curto-circuito acomete todo a apresentação. “Isso é muito profundo para mim mesma, como atriz, pois não tenho o controle absoluto desta situação. É mais uma questão de leitura do público que atribui esse ‘ligar e desligar’ da atriz com a personagem e vice-versa, que tem por conta o fato que faço do texto narrativa e o assumo na primeira pessoa ao mesmo tempo”, descreve.

No palco, a proximidade entre as duas artistas são colocadas em jogo constantemente, o que contribui para que cada apresentação seja uma nova versão possível. “Esta ‘construção e reconstrução’ é um processo que a escultora passa a todo momento. É seu processo dialético de criação, ela mesma debate a sua própria proposta e apresenta-se uma síntese para em seguida debatê-la novamente, e assim segue”, explica Denise. “É um dos processos mais saudáveis que vi e experimentei para quem tem a posição de querer estar sempre discutindo-se e chegando a novas posições, aproveitando seus amadurecimentos e estando sempre presente!”, complementa.

O espetáculo estreou em Nova York no Moma, em 2000 e teve poucas apresentações nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.

“Louise Bourgeois: Faço, desfaço, refaço”
Com Denise Stoklos
12 a 14 de março
21h (sexta e sábado), 19h (domingo)
Teatro Alterosa
Informações: 3237-6611

por Mariana Lage

Em sua 4ª edição, o Verão Arte Contemporânea mostra a que veio e reforça a resistência dos espaços de pensamento artístico da cidade. Pois, por distoante que possa parecer, na cena belorizontina, quem tem fama custa a deitar na cama. Quando se trata de trabalho de verve inovadora, de releituras críticas ou de reconstrução de formatos, gêneros e linguagens, os artistas da terrinha gozam de fama internacional, mas são pouco reconhecidos, divulgados ou assistidos entre seus pares. Não à toa, esse é o leitmotiv que embala as ações do Grupo Oficcina Multimedia (GOM), em parceria com a Mercado Moderno, ao propor nas primeiras cinco semanas do ano uma coleção de trabalhos “comprometidos com a complexidade dos tempos atuais”.

Entre 9 de janeiro a 10 de fevereiro, 23 espaços culturais expõem 63 artistas ou grupos de artistas que estiveram em cartaz no último ano com trabalhos recentes e poucas apresentações – tudo isso com uma verba irrisória de 80 mil reais. Contabilidade a parte, para a curadora Ione de Medeiros, o fundamental é conseguir congregar uma série de espetáculos, tanto de iniciantes quanto de grupos mais maduros, que desenvolvam vertente investigativa, inquietante, autoral. “A nossa função é dar visibilidade à produção contemporânea. Antes de tudo, desejamos apresentar ao público belorizontino espetáculos envolvidos em pesquisas e experimentações de linguagens”, expõe.

Para abrir o evento, a noite de sábado acolheu no Oi Futuro o espetáculo Sonhos de uma noite de Verão, produzido por Ione de Medeiros e Oficcina Multimédia, com participação colaborativa de Paulo Beto, na direção musical e no vídeo, e Lúcia Santiago, coordenando o núcleo moda.

Com um título que carrega uma homenagem a Shakespeare, a apresentação configurou-se como uma grande composição no instante, ou, nas palavras de Ione, como “uma grande instalação”. “Trabalhamos com os artistas a partir de algumas diretrizes. A temática proposta foi a Bela Adormecida que depois de anos de sono e sonhos disperta no verão cheia de desejos”, explica. Segundo a curadora, a idéia foi trabalhar os grupos separados por linguagens – moda, música, atuação cênica – e realizar encontros de diálogos. Os resultados mais recentes das pesquisas de cada núcleo, conduzidas desde agosto do ano passado, encontraram-se na primeira semana de janeiro para formalizar nortes de atuação/composição.

No Hall e no Teatro Klauss Vianna, do Oi Futuro, o público presenciou uma série  de sucessivos exemplos do que seja contemporâneo. Foram criados  grandes espaços dedicados à improvisação. E, na abundância de exemplos, não há como evitar um certo incômodo aqui, um riso nervoso ali, um escárnio do lado de lá.

A começar pela ala vestimenta, trazendo muito excesso e alguma indeterminação. Excesso de referência, excesso de tecido, excesso de falta de unidade. Os designers de moda convidados trabalharam cada qual seus ‘figurinos’ e ensaiaram com seus ‘modelos’ os gestos que deveriam encarnar seus “objetos vestíveis”, na expressão de Lúcia Santiago. Algumas roupas destacaram-se por trabalhar ousamente a temática, indo além da transição da infância para a puberdade, característica do conto de fadas, e extrapolando para uma leitura contemporânea, como foi o caso de Stéphanie Padilha e da dupla de estilistas Virgílio Andrade e Morgana Marla (responsáveis pela marca Duotonee). Estes últimos modelaram, em suas expressões, “uma bela adormecida pós contemporânea, andrógena, sem gênero e sem território. Uma ‘Bela’ que precisa de uma nova identificação a cada momento para se reconhecer”. O estilista Virgílio, escárnio e androginia em pessoa, encarnou sua própria roupa, dormindo, caminhando e debochando em cima de um sapato de plataforma de 10 cm e por trás de uma ambígua e quase amorfa máscara laranja. Ele encarregou-se da abertura e do ponto auge do momento desfile. Já próximo ao final da apresentação, o ‘desfile’ pecou quando os modelos encararam a passarela de forma corriqueira, com mão na cintura e andar a lá Giselle Bündchen. Excessões de novo com Virgílio Andrade e o modelo de Stéphanie, arrastando sombriamente seu casco negro de pesos e pesadelos de noites de verão.

Multiplicidade de referências esteve presente também na música. De forma harmônica, os 10 músicos no palco conduziram a performance músical entre cerca de cinco trechos marcantes: começando com uma atmosfera etérea a ambientar a entrada das belas-outrora-adormecidas; um segundo começo, de inspiração György Ligeti + metrônomo; três, uma caixinha de música com mantra japonês; quatro, momento deboche música eletrônica à la boate; e, para finalizar em grande estilo, extase big band free jazz.

Apresentação estonteante acompanhada de perto por um grupo de bailarinos-atores a desenvolver série de loopings temáticos. De forma caricatural, eles exibiram seus rebolados em momentos casa de strip tease, seus gingados de lutadores amadores de boxe e sua habilidade já autonomatizada de jogadores de video-game. Mais risos para a ocasião em que, com intervenção musical eletrônica de Paulo Beto, todos os bailarinos se moveram euforicamente como se estivessem engajandos no jogo, outrora tendência mundial, Parkour.

Todos juntos, os elementos causaram estranhamento entre parte do público, mas causou também entusiasmo e aplausos ao final. Em alguns momentos, ver tão contemporâneo incomoda, principalmente, àqueles desejosos da – ou tão-somente acostumados com a – beleza simétrica, a temática transcendente, a narrativa com início, meio, fim e a moral da história. Aqueles abertos à renovação do olhar, ao diverso e ao intrigante sairam com a pulga atrás da orelha ou com um sorriso curioso nos lábios. Espaço de reflexão tem a característica de começar assim: plantando interrogações, indignações ou prospecções.

Como abertura, Sonhos de uma noite de verão mostra o que é contemporâneo de forma pulverizada, caricatural e irônica. E nada mais hodierno que a multiplicidade de referências, o excesso e o deboche. A noite de improvisação mostra também o que é o Verão Arte Contemporânea e o que se pode esperar de sua programação.


por Daniel Toledo

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Uma boa notícia para as pessoas que tem pouco tempo e disposição para cuidar de plantas domésticas: foi desenvolvido um vaso-robô capaz de movimentar-se de acordo com a presença de luz solar. O que poderia ser confundido com mais uma comodidade da vida urbano-individualista, é na verdade uma obra do artista mexicano Gilberto Esparza – um dos convidados da 7a Bienal do Mercosul, que segue em cartaz até o dia 28 de novembro em Porto Alegre.

Nascido nos anos 70, Esparza tem desenvolvido um trabalho artístico ao mesmo tempo crítico e bem humorado, que desvenda as cidades como complexos e curiosos ecossistemas. Nesse sentido, as relações de consumo, reciclagem e parasitismo estabelecidas em ambientes naturais são poeticamente reinterpretadas por inusitados elementos urbanos como postes, fios de energia elétrica, montes de lixo e, como já se viu, plantas domésticas.

Por meio de intervenções estáticas e de robôs que portam idéias, desejos e medos, Esparza trata de temas extremamente pertinentes à vida urbana (sobretudo em cidades latino-americanas): desperdício, escassez, precariedade e esforços de subsistência, para citar alguns. Segundo ele, a cidade é um organismo vivo e a tecnologia – quase sempre low-tech – pode ser tratada como uma parte essencial desse organismo. Para além dos efeitos de interação e animação urbana, o artista interessa-se pela possibilidade de provocar perplexidade, de confundir e impressionar os transeuntes, motivando-os a decifrar acontecimentos estranhos e aparentemente espontâneos. Na visão de Esparza, essas micro-intervenções estão diretamente relacionadas ao que acontece no nível macro – e quem dirá que não?

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A partir dessa concepção e inspirado por vendedores ambulantes que fazem ligações clandestinas entre seus quiosques e postes de rua, o artista desenvolveu o projeto Parasitos Urbanos. De um modo geral, o projeto compreende o desenvolvimento de formas artificiais de “vida” que subsistem às custas de fontes de energia geradas pela espécie humana. De acordo com necessidades específicas, essas espécies incorporam-se a determinados espaços e estruturas da cidade e passam a habitar, em caráter mais ou menos permanente, tais paisagens urbanas. Enquanto diablitos e colgados alimentam-se dos cabos de energia que atravessam o céu das cidades, os pepenadores habitam pequenos montes de lixo tecnológico que comumente se acumulam em algumas regiões de grandes cidades.

A intervenção Cancer de Urbe, por sua vez, traz para o espaço da cidade a lógica inconsequente das células câncerígenas. Nesse trabalho, determinados elementos da paisagem urbana parecem sofrer processos de proliferação acelerada, desordenada e descontrolada, alterando o equilíbrio de outros elementos do entorno. Trata-se, assim, de anomalias visuais e funcionais inseridas no contexto da cidade – como um poste em que as luminárias se multiplicaram de modo excessivo e disfuncional ou uma faixa branca de sinalizacão que acabou tornando-se mais longa do que a própria rua.

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Mas é com alguns exemplares de uma outra espécie de parasita urbano que, ao lado da mulher-automóvel de Marcela Armas e da (incrível) kombi-árvore de Pablo Rivera, o artista mexicano integra a mostra Texto Público da 7a Bienal do Mercosul. Para visitar o Brasil, Esparza trouxe alguns robôs-moscas que, seja em vagões de metrô ou galerias de arte, mantêm o legítimo hábito de disputar território com qualquer ser humano que se aproxime. Vivemos, afinal, em tempos de escassez e nem mesmo as moscas estão livres da batalha pela subsistência – ainda que precária.


Blanche Neige

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por Mariana Lage

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A respeito de sua mais recente criação, apresentada em BH neste fim de semana nos dias 1 e 2 de novembro, Angelin Preljocaj a descreve como “um conto de fadas às avessas”. Segundo o coreógrafo, sua versão de Branca de Neve nasceu de um desejo de contar uma história por meio da dança contemporânea. Diante de suas criações marcadamente abstratas, Preljocaj, que empresta o nome à companhia, diz ter se guiado também pela vontade de “evitar ficar repetitivo” e fazer algo completamente diferente.

Ao aliar ao seu processo compositivo o figurino de Jean Paul Gaultier e a música de Gustav Mahler, o Ballet Preljocaj promete proporcionar a releitura contemporânea de uma prática clássica: contar histórias com início, meio e fim e com uma lei moral que a anima. Em entrevista a jornalista francesa Àgnes Freschel, e ao que parece a única cedida pelo coreógrafo desde a montagem do espetáculo, ele explica ter seguido a versão dos Irmãos Grimm, “com apenas algumas variações pessoais baseadas na minha própria análise dos símbolos do conto”. Se o psicanalísta norte-americano Bruno Bettelheim classificou sua Branca de Neve como um Édipo invertido, o coreógrafo assume um desejo de inversão: “A perversa madrasta é, sem dúvida, a personagem central no conto. É ela quem eu examino através de sua narcisista determinação de não abrir mão da sedução e de seu papel como mulher, mesmo que isso signifique sacrificar sua enteada”.

De fato, uma versão de Branca de Neve às avessas seria uma história em que a madrasta se torna a protagonista. No entanto, o avesso da ‘moralidade’ de um conto infantil a la Irmãos Grimm seria uma narrativa destituída de vítimas e carrascos. Numa história intitulada “A madrasta”, quem seria essa Branca de Neve que deseja lhe tomar o lugar e o toma? Quais forças estariam em embate entre brancas de neves, anões mineiros, príncipes e madrastas? E o que elas representariam – para além de um pensamento “o bem vence o mal”?

Em Blanche Neige os elementos contemporâneos em diálogo no palco estão a serviço de uma prática clássica não revisada. Não há desconstrução da narrativa e a releitura dos símbolos não parece ser o marco do trabalho, porque não se mostra suficientemente evidente para marcar de fato uma ruptura ou uma inovação na leitura. É releitura ou desconstrução simbólica de forma ambígua, uma vez que já na versão dos Irmãos Grimm existe essa oscilação entre a pureza infantil e o desabrochar do feminino. Uma ambiguidade que constantemente brinca com o imaculado e com o lascivo e que Preljocaj traz aqui e ali nos pax-de-deux da princesa em momentos e com parceiros diferentes.

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Sem dúvida, é o desabrochar do feminino que está em questão, mas o embate entre virgindade e lascívia em Preljocaj camufla-se em grande parte do espetáculo sob o confronto entre a inocência e pureza da princesa (como o belo, o bom e o verdadeiro) e a vaidade da madrasta (como a maldade humana). Num conto de fadas às avessas, a voluptuosidade do corpo de baile apareceria como parte central e como campo de batalha em que as forças e os símbolos da branca de neve e da madrasta estão em transição. Nesse caso, seria melhor pensar em lascívia do que em luxúria, a fim de que a releitura atual de um conto infantil não se torne moralizante. Embora os termos sejam bastante próximos, um deles carrega consigo carga de pecado e culpa. Portanto, pensar a sensualidade evidente no momento de transição de menina a mulher, sem carregar tal momento do peso extra da culpa da moral. Numa reversão deste conto infantil, seria preciso evidenciar a carga simbólica de cada personagem sem contudo polarizá-los como representantes do bem e do mal.

Num conto de fadas às avessas, a madrasta não é boa nem má. Ela simplesmente é o feminino em suas múltiplas faces. Uma Branca de Neve invertida desabrocha o feminino de forma voluptuosa sem contudo abdicar ou retornar a sua brancura.


por Mariana Lage

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Na última edição do Laboratório: textualidades cênicas contemporâneas, o diretor Antônio Araújo, consultor do projeto, apresentou sua visão a respeito do modo de divulgação e exposição das proposições artísticas que se desejam como intervenções urbanas. Sua linha de raciocínio parte do fato de que anunciar uma intervenção com hora marcada e público presente e expectante implode a imprevisibilidade e o distanciamento próprio às intervenções. Em seus questionamentos constam perguntas tais como: sendo ação política, em que medida a trabalhamos para resensibilizar e resimbolizar? É necessário que as pessoas saibam que ali estão bailarinos, atores ou performers? Em suma: de que forma usar o urbano como espaço de ação sem no entanto espetacularizá-lo?

Durante as apresentações da série de performances e intervenções reunidas na forma do projeto Perpendicular, realizadas ontem (28/10), os apontamentos de Antônio Araújo reapareceram no horizonte de fruição e discussão crítica. Tais questões foram trazidas por algumas ambiguidades quanto à posição de público e passante, performance-cena e performance-acaso, urbano e palco.

Segundo informações divulgadas pelos organizadores, a proposta do projeto é estender as ações artísticas para o espaço do cotidiano. Trazer para a rua questões estéticas que, aparentemente, encontram morada fixa e segura em espaços de exposição como museus e galerias. Nada mais condizente então do que propôr intervenções no centro da cidade e próximas à entrada de um museu – o Inimá de Paula.

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No entanto, uma questão que, acredito, desafia as discussões em torno das performances de ontem é: por que reunir muitos artistas em um mesmo dia? Ou antes, qual a necessidade de as performances-intervenções serem apresentadas no mesmo dia in-a-row? Em se tratando da semelhança entre algumas perfomances que trabalharam com distenção temporal, isso pode inclusive prejudicar a fruição de cada trabalho. Ou o conjunto de trabalhos foi pensado para ser uma amálgama, pensado para resultar numa única obra?

Será que a apresentação em conjunto recende a um certo desejo – ainda que oculto e em alguns momentos declaramente negado – por um público? Afinal existe convite, existe flyer, existe divulgação e release, e também cobertura jornalística. Portanto, por consequência, existe público!

É preciso, então, especificar quem é público de intervenção e quem é público de exposição. Se estou inadvertidamente parada no sinal de trânsito e me defronto com uma ação artística, sou público, fruidor ou … qual seria o nome mais adequado? Já inventaram? Ou podemos permanecer nos nomeando como passante, transeunte? Afinal é essa a nossa condição primária nesses espaços: estamos em trânsito, transitoriamente de passagem para chegar em outro lugar que não essa esquina, esse sinal ou esse lado da rua.

Do contrário, sem o desejo de público, cada artista poderia apresentar anonimamente sua intervenção quando lhe aprouvesse. Sem flyer, sem hora marcada, sem alarde. Será que a questão é que necessitamos ainda de algum tipo de formalização e reconhecimento? E, claro, sobretudo, tratar-se-ia de tornar explícito uma nomeação? Isto é performance! Isso é ação artística! Isso não é cotidiano! Não, não sou maluco: sou performer!

O ato de nomear expõe uma certa ressalva em dissolver-se na vida cotidiana. Daí, mais uma vez, o flyer, a divulgação e a apresentação conjunta como espécie de separação pública entre o joio e o trigo.

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Talvez a grande revelação da noite tenha sido a participação de um certo senhor. Invalidando temporariamente o aviso prévio entregue pela organização à Polícia Civil: um homem bêbado, habitante típico dos arredores do Edifício Maletta, provoca um pequeno, tímido e abafado rebuliço.

Diante de todas as pessoas belas e bem vestidas com postura encaixada que me afrontam no sinal de trânsito, quem é esse homem que se destaca por sua evidente excentricidade relativa? Todos estão sentados. O homem se movimenta, fala, tropeça, rebola, ri, se exalta. O detalhe é que sua participação não estava prevista. Ele não interpreta um bêbado, ele é o bêbado inconveniente que incomoda e intervém num fluxo ordinário do meu ir e vir. E como se deu a inclusão deste homem na performance? Ele é absorvido ou permanece destacado como intervenção dentro de uma intervenção?

No fundo, talvez a questão última seja esta: a metaintervenção deste homem participativo é performance ou ele permanece em seu status de homem bêbado dos arredores do Edifício Maletta?

Ou seja: preciso nomear para fazer existir? O maquinário de registro imagético ajuda ou prejudica o caráter mais essencial destas ações, qual seja: intervir no fluxo cotidiano, ser um ponto de luz em nossa rotina diária e urbana? Intervenções não têm “Luz! Câmera! Ação!”. Portanto, a riqueza de seus resultados, pelo o que se ouve dizer, está na imprevisibilidade, na surpresa, na ruptura com o esperado.

Por fim, mais uma pergunta: tornar-se anônimo é a morte para o artista? Por outro lado, publicizar e espetacularizar é certamente a morte da intervenção urbana. Não é intervenção. É palco montado na rua.


por Mariana Lage

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Uma dentre tantas das vertentes poéticas contemporâneas focaliza a possibilidade de proporcionar experiências estéticas a partir de objetos banais ou situações corriqueiras. Em meados da década de 50, o grupo Fluxus foi pioneiro em elevar à condição artística ações cotidianas tais como preparar uma salada, acender e apagar a luz, espirrar, abrir o olho, riscar um fósforo. Coetaneamente, John Cage trazia para o “universo da música” sons e ruídos até então considerados a-musicais. Naquela época havia uma preocupação recorrente entre os artistas de romper com as barreiras entre a chamada Arte Erudita e o mundo da experiência comum. Para George Maciunas tratava-se justamente de transformar a arte em uma forma de experimentar qualquer coisa: a chuva, o burburinho de uma multidão, um espirro, o vôo de uma borboleta, um almoço, um jantar.

Ao fim da primeira década do século XXI, oferecer experiências estéticas através de proposições artísticas aparentemente ordinárias continua sendo uma questão importante, e intrigante. Nos últimos dois meses, Belo Horizonte recebeu diversos eventos na área da performance art. Uma das discussões presentes nos corredores e mesas de bares próximos aos eventos circundou justamente o problema entre a banalidade de nossas experiências comuns e a banalidade de certas experiências proporcionadas por algumas performances.

Sem dúvida há espaço e respaldo para essas práticas artísticas, uma vez que a percepção poética/estética dos dias de hoje, se não é apropriada pelas mensagens publicitárias, é, por outro lado, sufocada (quem sabe até coagida) pela quantidade massificantes de imperativos do tipo “faça”, “seja”, “produza”, “compre”. Proporcionar então um espaço de afloramento dessas percepções poéticas e reflexões estéticas talvez possa ser adjetivado como um dos – outrora basilares, hoje em dia demodés – papéis sociais da arte.

Contudo, o ponto de interrogação insiste em se manter presente na fruição de grande parte da produção artística. A dificuldade da arte contemporânea continua sendo, assim, a necessidade de delimitar sua identidade: é ou não é arte e porque. A questão dos atributos plásticos, estéticos ou poéticos continua aparecendo no horizonte de fruição e qualificação dessa produção artística (há pelo menos quatro décadas). Continuam sendo pertinentes tanto para artistas e críticos, quanto sobretudo para o público. Porque – e de que forma, a partir de quais prerrogativas – acender um fósforo é uma obra de arte? Porque andar em círculos ou oferecer um banquete é uma obra de arte? Sobretudo para público pouco versado nas discussões estéticas e debates téoricos/filosóficos da arte, a questão se torna fundamental. Fundamental por causa de uma insistente necessidade comum a (quase) todos de separar arte e vida comum.

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Discutir a qualidade dos trabalhos e suas capacidades de proporcionar experiências originais será sempre uma tarefa inerente a própria esfera artística. A respeito de Fluxus, o filósofo Arthur Danto disse “que a questão não é quais são obras de arte, mas qual é a nossa percepção de algo se o vemos como arte”.

Reiterando, é sobretudo o tipo de experiência que temos com essas obras que as qualificam como sendo “obras de arte”, que lhe dão respaldo ou status artístico. Contudo, como medir, como certificar-se da qualidade ou da relevância das experiências proporcionadas? Ou tratar-se-ia hoje em dia justamente de uma “não medida”, não certificação – seguindo a proposta de Fluxus e  Cage de uma completa dissolução da arte nos mundos cotidianos?

Em “Neodadá in Music, Theater, Poetry and Art”, George Maciunas propõe que “se o homem pudesse ter uma experiência de mundo, o mundo concreto que o cerca, da mesma maneira que tem a experiência da arte, não haveria necessidade de arte, artistas e de elementos igualmente ‘não-produtivos’”. Enquanto John Cage na mesma época defendia uma música em que não mais haveria distinção entre compositor, maestro, músico e público. “É uma música feita por todos”. Para finalizar, vale lembrar que para Fluxus, a arte adquire “qualidades impessoais de um acontecimento simplesmente natural”.

Talvez tenhamos chegado a concretização dessas proposições-manifesto.


Sobreabismos

07ago09

por Mariana Lage

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Numa época em que o nomadismo entrou em voga, ainda que mais especialmente numa dimensão virtual, Cinthia Mendonça revoga para si uma permanência num espaço onde ela mesma não permanece. Para afixar e afirmar a qualquer custo uma relação mais intensa com uma cidade que, ela sabe, será temporária e pouco afetiva, a performer dispõe seu corpo num tempo dilatado no espaço elegido: “um não-lugar”, como gosta de referir, um local onde as relações são, por excelência, vacilantes, superficiais, transitórias.

É no lugar da impermanência do fluxo cotidiano da vida urbana que a relação de contato e o desejo de fixação se colocam. Com seu corpo, a estrangeira diz: “Estou aqui! Me perceba!”. E remetendo a uma temática cara à filosofia, enfatiza: “Só existo – nesta cidade de passagem – na medida em que o outro me percebe”. É o outro que permite minha existência; é ele quem dá o volume e a densidade a este determinado eu. E diante de um eu em constante movimento, é preciso destacar essa existência neste tempo e neste espaço. Sou Cinthia, estou em Olinda. Sou Cinthia, estou no Rio de Janeiro. Sou Cinthia, estou em Belo Horizonte.

Realizada pela primeira vez na escadaria da Rua André Cavalcanti, no bairro carioca de Santa Tereza, Sobreabismos será apresentado hoje, sexta-feira, no Viaduto Santa Tereza, dentro da programação do Espaço Aberto da 2ª edição da Manifestação Internacional da Performance. Entre 13h e 17h30, ou até o sol se pôr, Cinthia atravessa repetidas vezes o Viaduto, utilizando pigmento ocre dourado a base de água. O pigmento que marca, mas dilui posteriormente sua (im)permanência, é o mesmo que revela ainda sua relação com a terra, seu desejo de deitar raízes. Na impossibilidade de realizar o desejo de “permanecer a vida toda num só lugar”, é a obstinação pela repetição e o desejo de tornar intensa uma relação transitória que dão moção à sua caminhada. “E ao caminhar”, ressalta a artista, “eu revelo o espaço na mesma medida em que revelo a mim mesma”.

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Na ambiguidade de uma ação êfemera, mas distendida no tempo e com vistas ao perene, Sobreabismos destaca os abismos sociais e afetivos da convivência urbana, além de ressaltar o caráter intransponível entre a solidão de uma ação individual determinada e a coletividade flutuante dos espaços urbanos. E é por isso que Cinthia elege espaços como pontes, escadarias, elevados, viadutos: lugares que sirvam “de ligamento entre pontos da cidade e locais distintos, que possam sugerir o trânsito de pessoas e ao mesmo tempo conter a idéia de suspensão”. Na ânsia de ficar e significar, é possível perceber ainda uma outra contradição. Entre permanecer e relacionar, na tentativa de aparecer para esta cidade que agora habita, a performer transita por um espaço (e um tempo) suspenso. Qual a qualidade de uma relação originada nessas condições? Sua existência se dá em relação tão-somente com o espaço elegido ou com os habitantes da cidade? Qual o tipo de envolvimento aqui desenvolvido?

“Durante a ação posso conversar com as pessoas que se aproximam, posso aceitar e lhes pedir ou lhes oferecer ajuda para fazer a travessia, posso responder as suas perguntas, mas eu não posso parar. Os corpos que, assim como eu, executam a mesma corriqueira ação, caminham, enquanto com minha ação exaustiva revelo a poesia do movimento realizado por eles próprios e também os abismos entre as relações”, explica. “Para onde te levam as pontes? Sem elas: abismos. Queda. Suspenso o eu no ar”.

Clique aqui para assistir ao registro da performance realizada no Rio de Janeiro.


por Daniel Toledo

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Quando Magdalena Abakanowicz tinha nove anos de idade, viu tropas nazistas e russas invadirem o país onde nasceu e vive até hoje. Daí em diante, foram mais de quinze anos de rígida dominação stalinista sobre a sua cidade natal. Durante esse período, todas as formas de arte produzidas no país deveriam respeitar as regras e limitações do realismo socialista. Qualquer linha desnecessária era, por exemplo, imediatamente eliminada dos desenhos produzidos pelos jovens artistas que se formavam nas universidades polonesas. Foi justamente nesse contexto, entre 1950 e 1954, que Abakanowicz se formou pela Warsaw Academy of Fine Arts.

Mas com a morte de Stalin, em 1953, abriu-se um caminho para que os artistas poloneses tivessem contato com a produção de cidades ocidentais como Paris, Veneza e Nova York. Já na década seguinte – em meio aos movimentados anos 60 – Abakanowicz ganharia reconhecimento internacional pela criação dos Abakans, humanóides que até hoje caracterizam o seu trabalho. Em suma, trata-se de figuras humanas superdimensionadas, sempre “descabeçadas” e instaladas em grandes grupos. Aos olhos daquele que observa a distância, parecem todos iguais – como um exército russo, um grupo de prisioneiros poloneses ou uma multidão que se acotovela nas ruas movimentadas de uma cidade grande qualquer. Mas quem se aproxima dos Abakans pode perceber detalhes e texturas que os diferenciam.

Nas palavras da artista: “Talvez o núcleo da minha obra tenha se tornado a experiência da multidão, esperando passivamente em fila, mas sempre pronta para esmagar, destruir e adorar a partir do simples comando de um líder. Talvez seja o desejo de determinar qual é a quantidade mínima de pessoas necessárias para que as mesmas desapareçam e transformem-se em uma multidão. Me impressionam as situações em que a quantidade de pessoas deixa de importar e, então, quantificá-las deixa de fazer sentido”.

Em seu trabalho mais recente, chamado de Agora e instalado em 2006 no Chicago Grant Park, a equipe de Abakanowicz produziu, à mão, mais de cem Abakans, todos com aproximadamente três metros de altura e igualmente desprovidos de qualquer cabeça. As peças, que tiveram custo de U$3,5 milhões, foram produzidas em Varsóvia e financiadas pela própria artista, numa parceria com o Ministério da Cultura da Polônia. Múltiplas associações são possíveis, mas é inegável a força do discurso sobre o anonimato da vida – e da morte – nas grandes cidades contemporâneas. Por outro lado, parece interessante estabelecer relações entre a obra e a convivência da artista com o regime comunista, no qual aspectos como criatividade e individualidade eram fortemente reprimidos em nome de interesses coletivos.

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As fortes relações da artista com a Segunda Guerra Mundial lhe renderam ainda a oportunidade de criar uma obra para o acervo permanente do Hiroshima City Museum of Contemporary Art, no Japão. Em 1993, quarenta Abakans feitos em bronze foram instalados em uma das galerias abertas do museu. A obra recebeu o nome de Space of Becalmed Beings – algo como Espaço de Seres Acalmados – e ilustra perfeitamente a visão do crítico de arte Michael Brenson sobre a obra de Abakanowicz: segundo ele, os Abakans não são apenas objetos, mas também espaços que podem e devem ser “ocupados” pelo público. Nesse sentido, apesar de estruturalmente similares, cada conjunto de Abakans parece ganhar uma dimensão site-specific. Porque a experiência de uma pessoa que “ocupa” uma peça da Agora de Chicago parece ter pouco a ver com o que viveria a mesma pessoa, ao “ocupar” um dos Seres Acalmados de Hiroshima.


por Mariana Lage

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Em plena semana dos dias dos namorados, as ruas de Belo Horizonte ostentavam faixas pouco comuns. “Emerson, seu ciúme sufocou nosso amor”. “Bianca, descobri que não sou o homem para você”. “Rodrigo, meu amor por você acabou. Por favor entenda”. Num quarteirão qualquer, um carro de som chama por Luciana e o locutor, com sua suntuosidade costumeira, anuncia o término do namoro a mando de Otávio, que inspirado pelo fora de Caetano Veloso, retira alguns versos da música Não enche. Uma semana depois, nas paredes da Galeria Genesco Murta do Palácio das Artes, as faixas aparecem reunidas junto a registros de pichações e rabiscos em árvores e banheiros anunciando todos Declarações de desamor. Obras de Camila Buzelin. Obras ou registros?

Na exposição Lantejoulas no meu tédio, que reúne três trabalhos da artista desenvolvidos entre 2006 e 2009, somos confrontados com a comicidade das situações de fracasso e insucesso alheio. É cômico porque vivemos (ou recebemos o registro) a situação através do olhar estético. Até que ponto o pé-na-bunda foi simulado? Foram as faixas produzidas pela artista ou retratam, de fato, a dor e o dissabor do outro? Em Lacrimatório, chora-se por uma perda ou porque se corta cebolas? Em que medida as respostas a essas perguntas afetam nossa recepção desses trabalhos?

Se são ou não verdadeiras, se visam ou não um término trágico e grandiloquente, é suficiente saber que tocam o real. Há sim – e sempre haverá – uma Bianca, uma Camila, um Rodrigo, um Emerson que não são mais amados ou que não amam mais. Como na Quadrilha de Drummond, há sempre uma Lili que não ama ninguém. E há, com a mesma freqüência, um J. Pinto Fernandes que entra na história inadvertidamente. O que, afinal, é cômico? O fracasso, o amor ou o humano?

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Todas as cartas de desamor são ridículas. Se não fossem ridículas, não seriam cartas de desamor. Pois, como se sabe, o contrário do amor, não é o desamor, mas sim a indiferença. Aquele que não mais ama não diz nem “sim” nem “não”, apenas não diz. Abstém-se. Ser indiferente: desprendido, apático, isento.

É por isso que as cartas de amor tanto quanto as de desamor são ridículas. São ridículas por expor aquilo que seria “melhor” não expor: as mazelas do sentimento, coração e mente (e o juízo!) em frangalhos. Como no episódio da adolescente japonesa surda-muda em Babel, expõe-se aquilo que não conseguimos lidar em nós mesmos. A ferida aberta de uma dor íntima e pessoal. A fragilidade daquilo que é sentido como vergonhoso, piegas, e ao mesmo tempo dilacerador e excessivo. O nu sem erotismo. É aí que reside o incomodo, o constrangimento. Intimidade pública, vergonha alheia, riso nervoso.

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Por uma estética do Não

No meu tédio, lantejoulas por favor! Numa tarde azul (ou cinza?), ao passar pela roleta, uma garota destrambelhada deixa cair (por acidente?) dez quilos de laranja. Pontos de luz, estranhamentos em um dia qualquer em que se sobe vagarosamente o “tobogã” da Avenida do Contorno. Como em toda intervenção urbana, uma interrupção no fluxo ordinário do cotidiano. Expostos o vídeo e as fotografias da performance/intervenção na galeria do Palácio, retira-se a surpresa e a solidariedade do espaço coletivo do transporte público e acrescenta-se o riso do tragicômico. Porque, afinal de contas, todo fracasso em público nos torna ainda mais irrisórios. Aquele que observa no espaço de exposição, vê de fora, aponta o dedo, ri. Motivo de chacota, escárnio e zombaria.

“Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar”, Fernando Pessoa em Livro do Desassossego. Numa estética do Não, todos somos vencedores porque, fracassados, rimos das impossibilidades e incapacidades, nossas e alheias. Sabendo-se sem. Sem desejo de ser mais.

Lantejoulas no meu tédio, de Camila Buzelin
25 de junho a 22 de julho
9h30 às 21h (terça a sábado) e 16h às 21h (domingo)
Galeria Genesco Murta (Palácio das Artes)
Entrada franca


Alexandre Farto

01jun09

por Daniel Toledo

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Ao mesmo tempo herdeiro e contemporâneo de grandes nomes da street art como Blek le Rat e Banksy, o jovem artista português Alexandre Farto tem conquistado cada vez mais espaço nas ruas de Lisboa. Farto faz parte de uma geração que teve contato com o grafitti ainda no início da adolescência e, aos vinte e dois anos de idade, já acumula quase uma década de atuação. Dos tempos de adolescente, o artista conserva o apreço pelo espaço urbano e o interesse pelo trabalho colaborativo. Fica clara também a influência do discurso artístico-político do grafitti sobre a visão do artista em relação à própria produção: “O street art é a maneira que encontramos para personalizar este nosso ninho artificial, visando devolver às ruas da cidade a humanidade que as deveria rechear”.

Mas enquanto os trabalhos de le Rat e Banksy têm em comum a representação da figura humana em tamanho muito próximo ao natural, a produção de Farto traz aos muros das cidades somente rostos de pessoas. São grandes e expressivos rostos, que por um instante redimensionam os espaços que lhes recebem e sugerem, sobre esses espaços, uma outra percepção. Nesse sentido, a força estaria menos na imagem em si do que na relação estabelecida entre ela e o seu contexto espacial. Mas além de afetar esses contextos com novos significados, as criações de Farto parecem convidar o espectador a superar a indiferença cotidiana e interessar-se pelo que dizem os rostos dos outros – sejam esses outros anônimos ou não.

Especialmente interessante é a série Scratching the Surface, em que os grandes rostos surgem como vestígios de alguma coisa perdida, que já não existe mais. Nessa série, Farto convoca ao primeiro plano as cores que se escondem dentro dos muros. Estabelecem-se, então, relações entre as cidades, suas ruínas e todas as coisas que dentro delas se desgastam sem, no entanto, deixar ruínas aparentes. Nos rostos conhecidos, o desgaste pode remeter à ação do tempo sobre a memória coletiva; nos outros casos, parece referir-se a invisibilidade que é condição para o indivíduo que está na rua. As paredes se descascam, a tinta escorre, as pessoas desaparecem e as imagens parecem desmanchar-se, aos poucos. Nada resiste à força da constante renovação urbana.

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Mas não é só na técnica de trabalho que o jovem português tem trilhado caminhos diferentes daqueles percorridos por seus mestres. Vale destacar que, enquanto Blek le Rat e Bansky resistiram enquanto puderam ao sistema de museus e galerias de arte, Farto já tem trabalhos expostos em duas galerias diferentes: uma em Lisboa, outra em Londres. E quando questionado sobre a opção de expôr em espaços convencionais, as palavras são certeiras: “Sim, desde que os artistas sejam respeitados como tal e respeitem os princípios da street art/grafitti. Quebrar barreiras, pintar a parede, mandá-la a baixo. Resumidamente: fazer o mesmo que se faz na rua”. E adiciona: “Mas a completa liberdade do artista e do espectador, para mim, está na rua”.

Abaixo, um belo vídeo sobre a série Scratching the Surface: